A sombra dançou um bom par de minutos e eu não consegui esboçar nenhuma reação muito convincente, já que estava boquiaberto e congelado. No final da dança a sombra virou um velho de aparência simpática e familiar.
“Olha, veja bem. Bom dia.”
Não consegui lhe responder nada, de certa forma ele era muito mais estranho que a mãe e o filho de belzebu, que eu havia enchido de balas e esmagado até virar purê.
“Não precisa falar nada. Você consegue esmagar uma criança e uma mulher, mas não consegue falar consigo mesmo. Você, só para sua informação, vai sentir bastante a falta dos dois.”
Continuei quieto, mais concentrado em tentar fazer meus braços e pernas funcionarem.
“Eu sou você e você não vai se mexer até eu deixar que o faça. Desculpe se sou ríspido, mas vou colocar tudo em termos simples: a casa te dá uma escolha, ou você se rende e se transforme em mim, vivendo preso aqui até o fim dessa bela rocha chamada terra ou você mete um buraco de bala na testa e morre condenado e sujo para sempre. Qual vai ser?”
“Nenhum dos dois?” – fiquei surpreso ao conseguir responder.
“Eu tinha esquecido do quão imbecil eu era quando era você, sabe? Essa arrogância para disfarçar o medo, achando-se um leão da savana, detonando tudo e todos, ao invés de reconhecer a verdade de que só é um carneirinho boboca. Você vai aprender…”
Assim que ele disse isso, acabou se desmaterializando em minha frente. Num canto da sala havia um corpo novo, o meu próprio com um bala na testa, acenando alegremente para mim. De arma em punho me aproximei e, quando cheguei bastante perto, o corpo sorriu e piscou, desaparecendo.
Não tive tempo de ficar me questionando que diabos era aquele corpo e o velho que dizia ser uma opção de mim mesmo. Do nada uma porção de larvas, muito brancas, com bocas e dentes, caíram do teto e saíram de buracos, até então inexistentes, da parede e do chão. Elas pareciam só querer uma única e exclusiva coisa, Eu.
Tentei sair daquele cômodo, mas as larvas do teto começaram a morder meu corpo e me couro cabeludo, assim como as que saíram do chão começaram a morder meus pés. Corri, mesmo desajeitado, até que uma, na minha mão, mordeu e arrancou meu dedão. A dor e aflição foram excessivas e desmaiei. Era o fim.
Aparentemente não foi. Acordei, ainda na casa, deitado num sofá. Minha mão estava embrulhada num pano todo ensangüentado. Minha cabeça doía muito e ao colocar a mão nela senti inúmeras feridas, as malditas larvas, haviam inclusive, arrancado muito do meu cabelo. Careca, sem dedos e todo ferido. A arma também tinha sumido. A minha única dúvida era saber quem havia me “ajudado” e embrulhado meu dedo no pano.
“Claro que foi você mesmo. Na verdade fui eu, que sou você.”
Não respondi, dessa vez não por não conseguir, mas por não ter mais vontade.
“É estranho ser mal educado consigo mesmo. A auto-flagelação é um contra-senso. Antes eu estava preso aqui por todo a eternidade, mas tinha dedos e cabelos. O lance das larvas foi inédito até para mim.”
Aquilo devia ser algum tipo de teste e eu não estava passando. O próprio demônio devia estar encarnado dizendo que era eu. O que fazer? Não sabia mais de arma e nem tinha forças para matá-lo a pauladas, como tentei fazer com a mulher e a criança.
“Sempre batendo nessa tecla da mulher e da criança, não? Só para sua informação, quando eu entrei aqui, só havia a mulher. Passaram-se 9 meses e a criança surgiu. Faça as contas.”
Olhei com nojo para o sujeito que se dizia eu.
“Eu sou você, não tenha dúvidas. Um você de um outro lugar, mas em essência você. E você matou o nosso filho e mulher. Ruim, não?”
Imaginei o quão nojento seria ter aquelas três tetas na boca ou o quão terrível seria ninar aquele pequeno capeta.
“A casa ajuda nessas horas. Aqui é uma prisão, mas uma prisão de sua própria vontade. Não é?”
A pergunta não foi para mim. O sujeito, igual a mim, com uma bala na testa se aproximou e disse:
“É sim. Por sinal, eu também sou você. E dar um tiro na cabeça, não adianta de nada.”
“Se eu ainda tivesse minha arma. Já teria dado um fim nos três.” – respondi.
“Impossível, eu a peguei e dei um jeito. Não reparou que você e o velho também tem buracos de bala? As coisas são assim mesmo, estamos presos.” – ele respondeu apontando para meu peito, estourado e com um grande buraco de bala, que, por sinal, não doía nada. O velho fez sua cabeça girar – algo bem de filme trash – e me mostrou um buraco em sua nunca, olhando para o cara do buraco na testa com um enorme desprezo.
“ E ai qual vai ser agora?” – os dois me perguntaram ao mesmo tempo.
Não tive tempo de responder, a campainha da casa foi tocada, eles me mandaram abrir a porta ao mesmo tempo em que fazia a minha escolha.
Me senti compelido a obedecer. Na caminhada até a porta nenhum bebê mutante e nem um tipo de larva tentou me matar. Achei um sinal bacana. Quando cheguei na porta, fechei os olhos, toquei a maçaneta, desejei a atendi. Era você.
“E o que você escolheu?”
“Isso não importa. Você e eu estamos aqui. E eu sou você e você sou eu, se você ainda não reparou”.
“Eu quero sair daqui.”
“Desencana, o velho e o cara do buraco na cabeça estão arrumando o jogo na próxima sala. Para o truco, precisamos de quatro. Bem vindo…”